quarta-feira, 8 de setembro de 2010

O amor comeu meu silêncio


O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato.
O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço.
O amor comeu meus cartões de visita.
O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.
O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto, mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão.
Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.

(Trechos de Os Três Mal-Amados [1943] de João Cabral de Melo Neto)


A LITERATURA DE JOÃO CABRAL


De fato, um artista ‘inconfessável’. Voluntariamente concreto e (inconseqüentemente ou não) impactante e comovente, através de sua precisão e controle libertário das palavras. João Cabral de Melo Neto foi um poeta aquém de preferências literárias ou estereótipos representativos na poesia.

Sua vasta obra, marcada por uma característica ‘não-lírica’, - como ele mesmo costumava descrever,- expressa uma revolução interessante, progressista e madura aos mais importantes caminhos na história literária.

Claramente partidário da busca pelo lado antagônico ao sentimento ornamental, João Cabral é tido como o único poeta da geração de 45 que influencia a grande geração posterior, pertencida à vanguarda concretista brasileira das décadas de 50 e 60.

Sua estética, altamente aflorada dá sentimento a objetos, coisas, materiais.
Sua concisão fechada na construção de palavra sobre palavra, paradoxalmente traz envolvimento e intensidade. E sua sensibilidade crua, causa emoção, proximidade e subjetivos desentendimentos do poder que a poesia pode manifestar.
João Cabral de Melo Neto foi o “poeta que não chorou”, mas que incitou lágrimas. Indiscutivelmente.


Sua obra impulsionou a produção de um documentário pela editora Alfaguara. O resultado contou com depoimentos de nomes como Chico Buarque, Ferreira Gullar, Luis Fernando Verissimo, entre outros. Um material interessantíssimo:


Confira a segunda parte do documentário clicando aqui.


3 comentários:

Richard Serraria disse...

Richard Serraria diz:
meu pai
fiz mestrado estudando a obra dele
e um ano antes dele morrer, estive no Rio e conversei com ele na Praia do Flamengo...
um gênio, humilde a ponto de receber um estudante universitário mal saído da adolescência
tenho um CD com declamações dele, com sua própria voz lendo esse poema... belíssimo!

Jairo Sanguiné disse...

Esses post come a alma da gente, Didi. Tá lindo demais e teu texto flutua...parabéns querida.

Rafael disse...

você é maravilhosa, di! resumindo...