terça-feira, 27 de julho de 2010

Um pouco de Gondim

Estou vivo, por isso, visto a fantasia de poeta e tento compor meu hino.


O que amo na vida? O imponderável; dançar na beira de abismos; tentar cruzar despenhadeiros em corda bamba; esperar o tiro de canhão na largada da maratona e não saber como vou terminá-la. Adoro desconhecer as notícias que o telefone trará quando se intrometer em meu sono. Como é fascinante sentir um medinho infundado antes de receber os exames do laboratório.

Como é bom poder dizer que cada dia é suficiente em seu próprio mal, e não fugir de acordar a cada alvorada, mesmo sabendo que naquela manhã poderei renascer das cinzas, como naufragar em problemas.
O que amo na vida? Gente. Gosto de admirar a diversidade humana - tanto dos que me rodeiam como de quem nunca verei o rosto, admiro pecadores e santos.
A íris dos olhos é mágica; nela se escondem as intrigantes degradações humanas que se acumularam em milênios de história.

Sou fascinado com personagens depravados que preenchem páginas, capítulos, livros inteiros, e são seus olhos que mais despertam meu interesse. A perversidade humana me intriga porque faz o teatro existencial ser tão dramático; não fossem seus porões macabros, não haveria enredo para Shakespeare, Dante, Eça de Queiroz ou Machado de Assis. Como gosto de escrever, eu, igualmente, preciso deles.
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Que maravilha, as pupilas. Elas são policromáticas e delas também emanam réstias da pureza que nasce na luz divina. Se os maus são interessantes, devemos aos bons continuarmos vivos.

O que amo na vida? A singeleza das crianças que beijam roçando o nariz duas vezes; o altruísmo de quem oferece a casa para uma prostituta de esquina; o empenho do enfermeiro que faz serão gratuito ao lado do moribundo; a resiliência da mulher que asseia o marido que morre com Alzheimer; a doçura da filha que empurra a cadeira de rodas de sua mãe enquanto as duas passeiam pelo parque.
O que amo na vida? Sua beleza. Gosto de meditar, enquanto peixes coloridos bailam em câmara lenta pelos ribeiros; de ler, ouvindo o tamborilar preguiçoso da chuva fina; de pensar em Deus naquele momento breve em que a noite engole o sol e faz o dia desaparecer; de sentir que não posso me apressar diante de um Van Gogh; de recitar Vinicius em voz alta; de fechar os olhos e deixar que Bach me possua por inteiro.

Adoro textos pungentes. Sou melancólico como a bossa nova do Jobim; sinto-me geneticamente ligado à nostalgia do fado português; prefiro estradas bucólicas, aos jardins do Expressionismo.

[Tributo à Vida - Fotos: minhas, pelos anos de 2008 e 2009.]

Um comentário:

Jun disse...

Genial. Me impressiono com essa sensibilidade sempre, Di.

Lembrei do tempo em que vc vivia fotografando pelo mundo, sinto saudades de suas imagens e de vc.. e de tudo.