quinta-feira, 21 de março de 2013

deuses em apartamentos



Guardei os tempos em que nos escondíamos em apartamentos, guardei dos anjos a fúria e dos teus olhos a incúria de quem teve ao lado o passado e lhe deu a mão. Vem, irmão esquecido, o tempo nos rende e a cidade espera. O concreto nos prende em suas enormes fachadas — imensas moradas para quem vive de rua. Vem — que um guarda apagado desespera e apaga a lua. Vem, atravessa e me espera nesses bancos vazios onde desfilam as ruas, que eu tenho o engano e o sopro mundano que esfria os dias no sul. Enquanto Pelotas dorme aconchegada ao relento, na esquina, uma moça me espera de costas com os cabelos ao vento e olha ao relógio a distâncias do tempo - uma máquina de ver as horas de minha demora quando aguarda sentada às escadas do mercado dos sonhos sem dono que brotam com o outono de uma catedral. São sete horas de mim até ela, horas viradas em poesias rasgadas que nos separam com casacos de lã das solidões inventadas que não podem ficar para depois. Tu esperas à mesa escura, aguardas a noite com um café. Eu sou apenas o poeta pequeno e sem fé com minhas rimas cadentes e acostumadas, com as páginas escritas com as pedras polidas pelos tempos que nascem dos pavimentos ladrilhados das praças. Saiba que nós dois morremos. Saiba que nós dois nos perdemos. Saiba que o tempo é apenas o esquecimento agora - e a eterna demora ao contrário de quem apenas espera e não tem mais a cara manchada de todos poemas. Fomos embora e trancamos as casas. Fomos embora com fome e com pressa. Na mesa da sala vazia, sou apenas um vidente santo da treva, um homem de olhos de vidro com uma poesia engasgada. latido, esquecido pelas palmas ásperas das tuas mãos pesadas — em casa, as janelas fechadas e a luz das semanas passadas sem teus passos e sem tua fumaça em meus sapatos de pedra. Poetas, bandidos, cachorros, policias e mendigos. Transientes, migalhas das casas, mulheres que descem as escadas. Empresários e homens, bichas e negros, filósofos com medo e árvores que esperam elogios. Amigos e fantasmas, viados e travestis, pastores e padres — saímos, morremos, fugimos daqui. Vamos embora agora, desespera e faz as malas, desfaz os cabelos que os homens caminham pelos largos que viram rios. Armas e balas, linhas que matam e escrevem sorrisos contidos, anjos deprimidos sem asas e palavras que amarram tua poesia que sempre te espera ali. Está tudo acabado, a menina me espera nas escadas e conta as horas ao pé do sol quando a noite traz as amarras de pano e vê o portal do mercado fechar. Sou cético incauto e pego carona nos ombros descrentes. Desespera e faz tuas malas, carrega tua arma com as balas e nunca volta a escrever. Atira, congela, inventa e revira as mentiras que é só o que tens. Moleques, crianças que pedem socorro — o céu sobre os morros, o sangue em escombros e as ruínas inquietas dos fantasmas vizinhos. Não há mais ninguém aqui.

[Grau Zero - Guilherme Oliveira]

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