sexta-feira, 29 de março de 2013

Texto II para o E-cult: Uma alucinação real a palo seco



Não é todo dia que se encontra o Belchior. Aliás, neste tempo tão business em que falar do seu sumiço rende curiosidade, o encontrá-lo soa como surpresa. Em tempos que o Fantástico fazia uma série sobre o seu desaparecimento, eu o encontrei aqui.

Entre frio de julho de 2011 e ruídos da rua, sentamos em um Café que nos desse margem à visão da cidade por fora. Com um Vício Elegante de quem observava o olhar de quem nunca o tinha encontrado, Belchior se resume em cada verso que sempre cantou:  “Sons, palavras, são navalhas/ E eu não posso cantar como convém /Sem querer ferir ninguém.”

Um típico compositor que não se encontra em qualquer esquina. Além da genialidade visível, Belchior não é posudo e sua sensibilidade cortantee sutil, nos leva a uma esfera de questionamento sobre este tão vasto e complexo mundo doentio.
- Como é a poesia aqui? - perguntou.

Com minha Lira dos 20 e poucos, respondi que está sendo retomada, depois de tanto tempo. De Lobo da Costa até agora, o que mudamos? Pelotas nunca esteve tão desapegada de padrões na poesia. Não estamos tão dependentes da vanguarda. Nossos poetas não saem muito a noite. Acordam cedo, precisam trabalhar e cuidar dos filhos.

Ele perguntou de novos e velhos. Parecia fazer em tantas vezes um pequeno mapa do tempo. Questionou o fechamento do nosso Sete. Elogiou nossa praça. Lamentou nossas estúpidas desigualdades sociais.
“O movimento literário russo deveria ser como espelho a todos nós. Eles foram revolucionários.” Disse que tem composto muito. E sobre a especulação de sua vida na mídia, prefere silenciar. Seu desespero poético não é apenas em “Moda 73”. Belchior ainda está tão vivo e presente como em tempos de “Como Nossos Pais.”

Tudo estava no mesmo lugar. Pelo vidro que observava a cidade, vimos a essência do cotidiano daqui. Nós feito aqueles galhos de árvores do outro lado. As placas. Bicicletas com megafones roucos.  A venda na rua. A venda por dentro. O papelão e o corpo. A cidade se consumindo. O resto todo vivendo.

Ele voltou os olhos à mesa. E permaneceu tomando o chá de canela com maçã. Pediu um doce. Conversamos sobre mendigos, arte e trânsito. Nos despedimos. Belchior veio subitamente e foi embora da mesma maneira.

Com aquela melancólica sensação de quem acaba de assistir uma obra de Lars Von Trier, saí  com o coração em chamas, tão imagético, cinza, afoito, quente e calado.  O  Poeta do Coração Selvagem mostrou que estava certo: o delírio é a experiência com coisas reais em um ‘Até mais ver de Corpos terrestres’, em nossa ‘Pelotas ao Contrário’, como ele quis chamar. Belchior foi embora. Mas disse que quer voltar.

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Capa desta edição:


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quinta-feira, 21 de março de 2013

deuses em apartamentos



Guardei os tempos em que nos escondíamos em apartamentos, guardei dos anjos a fúria e dos teus olhos a incúria de quem teve ao lado o passado e lhe deu a mão. Vem, irmão esquecido, o tempo nos rende e a cidade espera. O concreto nos prende em suas enormes fachadas — imensas moradas para quem vive de rua. Vem — que um guarda apagado desespera e apaga a lua. Vem, atravessa e me espera nesses bancos vazios onde desfilam as ruas, que eu tenho o engano e o sopro mundano que esfria os dias no sul. Enquanto Pelotas dorme aconchegada ao relento, na esquina, uma moça me espera de costas com os cabelos ao vento e olha ao relógio a distâncias do tempo - uma máquina de ver as horas de minha demora quando aguarda sentada às escadas do mercado dos sonhos sem dono que brotam com o outono de uma catedral. São sete horas de mim até ela, horas viradas em poesias rasgadas que nos separam com casacos de lã das solidões inventadas que não podem ficar para depois. Tu esperas à mesa escura, aguardas a noite com um café. Eu sou apenas o poeta pequeno e sem fé com minhas rimas cadentes e acostumadas, com as páginas escritas com as pedras polidas pelos tempos que nascem dos pavimentos ladrilhados das praças. Saiba que nós dois morremos. Saiba que nós dois nos perdemos. Saiba que o tempo é apenas o esquecimento agora - e a eterna demora ao contrário de quem apenas espera e não tem mais a cara manchada de todos poemas. Fomos embora e trancamos as casas. Fomos embora com fome e com pressa. Na mesa da sala vazia, sou apenas um vidente santo da treva, um homem de olhos de vidro com uma poesia engasgada. latido, esquecido pelas palmas ásperas das tuas mãos pesadas — em casa, as janelas fechadas e a luz das semanas passadas sem teus passos e sem tua fumaça em meus sapatos de pedra. Poetas, bandidos, cachorros, policias e mendigos. Transientes, migalhas das casas, mulheres que descem as escadas. Empresários e homens, bichas e negros, filósofos com medo e árvores que esperam elogios. Amigos e fantasmas, viados e travestis, pastores e padres — saímos, morremos, fugimos daqui. Vamos embora agora, desespera e faz as malas, desfaz os cabelos que os homens caminham pelos largos que viram rios. Armas e balas, linhas que matam e escrevem sorrisos contidos, anjos deprimidos sem asas e palavras que amarram tua poesia que sempre te espera ali. Está tudo acabado, a menina me espera nas escadas e conta as horas ao pé do sol quando a noite traz as amarras de pano e vê o portal do mercado fechar. Sou cético incauto e pego carona nos ombros descrentes. Desespera e faz tuas malas, carrega tua arma com as balas e nunca volta a escrever. Atira, congela, inventa e revira as mentiras que é só o que tens. Moleques, crianças que pedem socorro — o céu sobre os morros, o sangue em escombros e as ruínas inquietas dos fantasmas vizinhos. Não há mais ninguém aqui.

[Grau Zero - Guilherme Oliveira]

quarta-feira, 20 de março de 2013

Aqui fora, aqui dentro (Texto I - E-cult)


Já está impressa e distribuída pela cidade a primeira versão do novo jornal cultural: E-cult. O projeto E-cult começou como um  site e agora tornou-se um jornal que passa a contar com uma nova formação de editores, redatores e colunistas.

A edição tem uma tiragem de 4.000 exemplares, que podem ser encontrados em universidades, cafés, associações, bares, coletivos, ongs e pontos culturais espalhados pela cidade de Pelotas.

Ao lado de Guilherme Oliveira, faço parte da etiqueta "Colunistas" no jornal, escrevendo um texto a cada edição.

Um tanto difícil e excitante começar o primeiro texto. Um tanto assim, tão vago, em uma auto-crítica necessária, mas com o tempo vamos afinando mais e mais.

Sugestões e tudo o mais sempre serão bem-vindas.
*


Pensar no que Pelotas representa em sua cultura artística tão icônica, requer um exercício multidisciplinar, desconfortável em certo ponto, admirável em outros, e, acima de tudo, um exercício bagunçadamente mestiço. Difícil para não dizer impossível. Forte para não dizer pesado e denso. Pelotas grita e silencia. O tempo todo.

Sempre me questionei com a ideia de uma Pelotas tão tradicional em uma visão geral e predominante. Já conheço o discurso firmado em um contexto de uma época que ditou estereótipos, costumes e dogmas de uma Pelotas menos diversa do que, de fato é e sempre foi. O discurso é até coerente dentro da particularidade que se escolheu. Pois é verdadeiro e comum sabermos - e, inclusive, disseminarmos e fomentarmos nossa visão, sentimento e identificação da Pelotas fria e francesa, com seus  prédios, casarões,  lagos e  pedras que fizeram do nosso chão um chão tão nosso. Essa estética fria, com praças, chafarizes, chapéus e cachecóis;  e todos os elementos que compõem o pacote estão tão próximos e tão embutidos em nossos modos automáticos de vermos e sentirmos nossa Satolep que chega um ponto – e este ponto não é o limite, que é preciso também olhar para o outro lado da ponte.

Nem é preciso o outro lado. Diante dos nossos olhos abertos, veremos uma Pelotas fria sim, uma princesa chuvosa e úmida, mas além da temática do clima e tempo – e tudo o que isto venha a representar, há um misto de vivências e peculiaridades capazes de tornarem uma teia quase infinita de pontos que fazem de Pelotas, indubitavelmente, um bucolismo cultural, vivo, imagético, marginal, poético, e, repito: gritante e silencioso.  

Pelotas, esse paradoxo entre o asfalto e o barro. Entre o canteiro e a valeta. Entre o salto-alto e o chinelo de dedo. Entre laquês e piolhos. Pelotas tem mármores com lustres brilhantes e muros, tão perto exclamando: “Estes grandes prédios foram levantados por mãos escravas!”. Pelotas, esse paradoxo entre tanta coisa latente, é também terra da resistência do movimento hip hop que cresce nas periferias e reúne mais de 1000 pessoas em shows de guris de vinte e poucos anos em praças centrais. Genialidades como a de um escultor analfabeto que dá ensinamentos para acadêmicos e pesquisadores de artes, não fazem parte ainda das Salas de Arte, mas existem em vivências diárias nos bairros e no centro.  Pelotas, terra do choro grandioso de Avendano e seus companheiros, do reconhecimento nacional de suas produções caseiras, feitas ali, na salinha de casa, sem marketings e holofotes. Pelotas é também terra de instrumentos exóticos e ancestrais, criados e tocados por M. Baptista, Giba-Giba e Dilermando, como o tambor de sopapo, elo com a África. Pelotas, sede antiga do Carnaval popular de rua lá de décadas atrás, - no tempo em que nosso Carnaval não era privatizado e tinha o reconhecimento de um dos mais procurados do País. 

Pelotas grita e silencia. Gritos de diferentes cantos, formas e sintaxes.  Um gesto mudo em diferentes episódios de tempo e lugar.  Pelotas é gritante nos esteriótipos antigos-atuais e ainda um tanto silenciosa para abrir-se ao reconhecimento e identificação da sua complexa e bela diversidade. Pelotas às vezes é fora quando quer ficar dentro de algo só. 

Pelotas é cênica, bailarina e cinematográfica. Tem também reggae, samba, jazz, blues, rock underground, boemia, escritores novatos que ainda não publicaram, alguns colocando a boca no trombone, através de sua arte, gente diferente escondida, precisando ser vista por uma perspectiva mais ‘somos além de uma estética estabelecida’.  E Pelotas é também clown: Tem Teatro do Oprimido e palhaços espalhados fazendo arte na frente de um Teatro fechado. 

Ediane Oliveira é Jornalista. Produz e apresenta o Programa Navegando RádioCom e faz parte da Maria Bonita Comunicação.