segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Agora.


O contrabaixista Ron Carter dizia que sua função num quinteto de jazz (e ele foi o contrabaixista do quinteto de Miles Davis) era tocar sempre a nota que impedisse os outros músicos do grupo de tocar a nota que eles imaginavam que iam tocar, obrigando-os sempre a encontrar uma nota inesperada. Penso sempre nessa frase, obsessivamente, mesmo sem ser músico, e acho que é porque no fundo a vida, tal como a vivo, é o meu Ron Carter, sempre fazendo soar a nota que me impede de tocar a nota que eu achava que ia tocar, e me obrigando a encontrar outra, à queima-roupa, numa fração de zepto-segundo. Às vezes desafino feio, falho, perco o tom e o rebolado, e os amigos me vão recolher no lixo, entre trapos de lágrimas, gatos e espinhas de peixe, e outras vezes mando tão bem que o pequeno público do enfumaçado e noturno 'pub dos corações solitários' se levanta, dança na pista e entre as mesas, esboça um sorriso entre as lanterninhas japonesas dos cigarros e os anjos boxeadores que existem em cada copo de gim e ao final aplaude e grita, olhos brilhando: 'mais um!'. E eu toco um novo solo feito das lembranças de ter sido recolhido no lixo, entre trapos de lágrimas, gatos e espinhas de peixe. Disse o Paul Valéry que um leão é feito de carneiros devorados, eu sou um carneiro feito de leões ferozes ludibriados.
[Carlito Azevedo]

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