quinta-feira, 31 de maio de 2012

Uma micropoética do ressentimento, do rancor e de outras duas categorias com R


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Não se trata, antes de mais, de uma inversão retórica que outorga valor positivo àquilo que é tão caro por seu caráter torpe e deletério; não se trata, de modo algum! de uma atribuição impetuosa de gênio médio que estetiza a maldade, a mordacidade e a mediocridade em uma operação que aflora o bom gosto porquanto o deflora; uma micro ou pequena poética tampouco se constitui como retração ou cirurgia conceitual: sua missão é outra, não importa qual — desde que sempre outra. Eclode, portanto, menos como uma configuração qualquer que arremata uma obra e reflui sobre ela como sombra intelectual do que como um compromisso daquele que a faz emergir, um compromisso que zela pela pequenidade em um obsessivo e possessivo cuidado que divisa pontualmente na rachadura do caráter, da identidade, da técnica, da obra ou do pássaro cinéreo que singra pela intempérie celestial o espaço emergencial daquilo que há de mais poético nestas ocasiões — pois, mesmo que não haja nada ali, tem-se uma fé inquestionada de que é mesmo na falha que paira a possibilidade de emergência. O caráter da obra a partir da falha e da falta — ali onde a obra falta —, sendo assim, é, talvez, emergencial: a obra é sempre emergência para o artista. Assim, creio que esse lapso do arranjo através do qual ele mesmo se trema propicie, ao revés, a possibilidade negativa de uma cúria que medra ela mesma na interrupção defeituosa, no hiato da harmonia e assoma a obra, em um rompante, a partir da sombra do detalhe, da nódoa indelével, da niilina sempre impendente de modo que, e isto é apenas uma simples possibilidade, o gênio, se me é permitida a utilização deste termo com modesta conotação genésica, já concebe sua criatura em um delírio invertido: a gênese da ruína é a ruína genérica — tudo oblitera-se e anula-se em uma vertigem ubíqua; restam o medo insondável e a solidão aterradora de quem só consegue, com tudo, remover o véu do nada e drapejá-lo ansiosamente, legando-se morosamente à melodia pungente dos ventos do terror da incerteza como quem abandona-se ao pélago da alma em um projeto negativo totalizador: é a obra — o edifício, o excremento, a endrômina humana; é a obra como testemunho do ato que enerva e extingue, o ato por trás do qual o actante retira-se, seduzido a passar à dimensão própria do ato que, conjeturo, é a dimensão em que se fazem básicos o residual e o impensável. A falha é — consumação e consumição — conjunta e concorrentemente — mas não tem lugar; o que, no entanto, põe e depõe, se tudo elide, se tudo esquiva? Se sucede, não obstante, creio que se trata de uma supressão serena, recorrente, mas sempre ocorrida — é o ressentimento, o rancor, repúdio, ridículo e o retardo — revertem-se todas as categorias com R que sintetizam os processos, os sentimentos, os atos e tudo que há de genésico, e também mortificante, justamente ali onde a obra cessa, onde o erro se converte em necessidade. Não há, porém, nada de benfazejo ou de encantador no erro, reitero; ele é, antes de mais nada, doentio, obsessivo — obsidia o gênio — é o que dá à luz, de soslaio, a falha, a ruína, como soleira. Uma micropoética neste sentido, por fim, talvez caracterize-se por um esforço canhestro e incipiente de voltar-se a esta soleira: ela é o detalhe que, embora articule, também interrompe, desconfigura, derroga e rasga; é uma atenção cuidadosa e alucinada, por vezes premente e necessária, generativa. Uma micropoética assim talvez seja nada mais do que a vertigem do trespassar — uma vertigem clínica.

(O poema que eu quero ler. Acho que sempre.)

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