quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

El laberinto de la soledad


Yuri viu que a Terra é azul e disse a Terra é azul.
Depois disso, ao ver que a folha era verde disse
a folha é verde, via que a água era transparente

e dizia a água é transparente via a chuva que caía
e dizia a chuva está caindo via que a noite surgia
e dizia lá vem a noite, por isso uns amigos diziam

que Yuri era só obviedades enquanto outros
atestavam que tolo se limitava a tautologias
e inimigos juravam que Yuri era um idiota

que se comovia mais que o esperado; chorava
nos museus, teatros, diante da televisão, alguém
varrendo a manhã, cafés vazios no fim da noite,

sacos de carvão; a neve caindo, dizia é branca
a neve e chorava; se estava triste, se alegre,
essa mágoa; mas ria se via um besouro dizia

um besouro e ria; vizinhos e cunhados decretaram:
o homem estava doido; mas sua mulher assegurava
que ele apenas voltara sentimental. O astronauta

lacrimoso sentia o peito tangido de amor total
ao ver as filhas brincando de passar anel
e de melancolia ao deparar com antigas fotos

de Klushino, não aquela dos livros, estufada
de pendões e medalhas, mas sua aldeia menina,
dos carpinteiros, das luas e lobisomens,

de seu tio Pavel, de sua mãe, do trem,
de seus primos, coisas assim, luvas velhas,
furadas, que servem somente para chorar.

Era constrangedor o modo como os olhos
de Yuri pareciam transpassarar parede,
nas reuniões de trabalho, nas solenidades,

nas discussões das metas para o próximo ano
e no instante seguinte podiam se encher de água
e os dentes ficavam quase azuis de um sorriso

inexplicável; um velho general, ironicamente
ou não, afirmara em relatório oficial que Yuri
Gagarin vinha sofrendo de uma ternura

devastadora; sabe se lá o que isso significava,
mas parecia que era exatamante isso, porque
o herói não voltou místico ou religioso, ficou

doce, e podia dizer eu amo você com a facilidade
de um pequeno-burguês, conforme sentença
do Partido a portas fechadas. Certo dia, contam,

caiu aos pés de Octavio Paz; descuidado tropeçara
de paixão pelas telas cubistas degeneradas de Picasso.
Médicos recomendaram vodka, férias, Marx,

barbitúricos; o pobre-diabo fez de tudo
para ser igual a todo mundo; mas,
quando aparecia apenas banal, logo dizia coisas

como a leveza é leve. Desde o início,
quiseram calá-lo; uma pena; Yuri voltou vivo
e não nos contou como é a morte.

[Eucanaã Ferraz]

domingo, 19 de janeiro de 2014

[até que o mundo seja ao contrário]

... amariquei também
os braços com tatuagens do teu
nome, vou esquecer-te rapidamente até
que o mundo seja ao contrário, porque
o amor ao contrário é um ódio
grande que cura os meus males, quem
quiser casar comigo, outrora
formoso e prendado, há de encontrar-me
aqui, monstruoso e paciente, a sopa ao
lume, os filhos sonhados como projeções
nas paredes escuras, cabelos pelo chão
gatos vadios

a minha casa é sob o alçapão,
não diz nada, podem encontrar-me pelo odor
a morte crescendo ou pelas linhas caídas,
sobrantes da tarefa árdua de repensar o
que vestir, mas se voltasse a sair à rua, gostava de
ter coragem para sair nu, talvez apenas os
gatos em meu redor, como fogo persa, sujo,
outrora tão formoso e flamejante, agora
atiçado aos pescoços de quem passa

[valter hugo mãe]